Entrevista a José Pimentão, ator português no elenco de '1899': um enigma sobre "o significado que têm as ações das pessoas"

Este artigo foi publicado no Espalha-Factos a 20-11-2022.

José Pimentão é o ator português que integra o elenco da nova série da Netflix, 1899. O projeto é da responsabilidade de Baran bo OdarJantje Friese, os mesmos criadores da série Dark. O Espalha-Factos esteve à conversa com o ator português, que se prepara para a sua estreia internacional numa produção estrangeira.

A família de José Pimentão "sempre foi, direta ou indiretamente, ligada às artes". O artista de 34 anos conta que fez parte de uma banda "durante nove anos", o que o ajudou a perceber a paixão que sentia pelos palcos. Em 2013, decidiu fazer aquilo que realmente o motivava, "comunicar com as pessoas através do diálogo".

Foi no teatro que José Pimentão encontrou um meio onde conseguia reunir "várias ferramentas de comunicação que podia utilizar" para se expressar. Através "da música, da coreografia, do texto dramático e de uma série de dispositivos", José Pimentão percebeu que o teatro seria o seu "veículo", começando a estudar e a trabalhar na área.

A paixão pela representação levou-o a participar em diversos projetos, desde o cinema até à televisão. José Pimentão fez parte do elenco de curtas-metragens como PutoLuxOur GardenNinhoIvanEvaMoço, sem esquecer a longa-metragem Al Berto. Na televisão, participou em Filha da LeiValor da VidaTeorias da ConspiraçãoSolteira e Boa RaparigaSantiago1899 é a estreia que se segue, e o projeto mais desafiante para o artista.

josé pimentão José Pimentão em '1899'. Fonte: Netflix

Depois de vários anos a trabalhar na indústria audiovisual portuguesa, como a caracterizas?

Às vezes é muito otimista dizer que temos um mercado ou indústria. É um mercado no qual todos sabemos que existe um subinvestimento crónico porque a cultura, em geral, é vista por quem governa como uma despesa e não como um investimento. Enquanto a cultura for vista desta forma, não vamos conseguir capitalizar todo o potencial que temos, tanto a nível humano como a nível intelectual e financeiro.

Entristece-me perceber que este subinvestimento não nos permite contar mais e melhores histórias. Muitas vezes, acabamos por nos cingir a formas que sabemos que resultam e há pouco arrojo porque não há muito espaço para que isso aconteça. Se estivéssemos num mercado maior, havia mais espaço para contar muitas histórias e mais temas. Mas trabalhando num panorama tão reduzido... torna-se complicado que isso aconteça.

Acho que é mesmo uma pena, porque acredito que Portugal tem boas condições e capacidades a nível de recursos humanos, técnicos e artísticos para criar coisas absolutamente extraordinárias e tornar [este um] sítio mais prolífero a nível de produção.

Mas isso não existe porque não há qualquer lei do mecenato. Apenas agora saiu o Estatuto dos Profissionais da Cultura. Não há visão estratégica, porque é visto como uma despesa que apenas se tem porque está na Constituição da República Portuguesa.

Vejo isto com muita tristeza, mas com alguma esperança para com todos os trabalhadores das artes, das culturas e do audiovisual em Portugal. No fundo, precisamos de mais dinheiro. Com mais investimento, empregamos mais pessoas, falamos sobre mais coisas, abrangemos mais público, são produzidos filmes, series e espetáculos para todos os gostos e conseguimos ter um setor menos precário.

Existem cada vez mais produções internacionais a investir em Portugal. Qual é a tua opinião sobre este recente fenómeno no mercado audiovisual?

Eu acho que, finalmente, perceberam que os portugueses são bons em muita coisa. Efetivamente, temos profissionais muito competentes, temos boas condições e um país bastante cinematográfico. Estes novos projetos permitem-nos contar mais histórias, empregar mais pessoas, aprender com novas pessoas do mercado internacional. Eu quero ver de uma forma otimista, mas também é importante nós lutarmos por melhores condições no nosso próprio mercado.

Acho que é preciso ter algum cuidado com a forma como gerimos a abertura de Portugal ao mercado audiovisual global. Penso que é relativamente fácil alguém chegar cá, ver que é bom e barato e aproveitar-se disso. Mas se isto for bem gerido, poderemos ter muita coisa a ganhar com isso, claro.

Agora passas do mercado nacional para o internacional. Como surgiu esta oportunidade de fazer parte de 1899?

Este projeto tem a particularidade de ser muito internacional, tanto no elenco como no resto da equipa técnica. A equipa da série veio até Portugal à procura de um intérprete português para uma personagem em específico. Então, eu fiz o casting e fiquei. O processo de casting teve três etapas e ainda decorreu durante outubro 2020, em plena pandemia. As reuniões ocorreram por Zoom, o que foi estranho. O Baran bo Odar dizia que parecia que não estava a funcionar, mas o resultado final provou o contrário. Portanto, de uma certa forma, a pandemia também veio mudar a forma como as coisas foram feitas.

Depois, começámos os ensaios e o processo de pré-produção em Berlim, entre finais de fevereiro e inicio de março de 2021. As rodagens começaram em maio e estenderam-se até novembro do mesmo ano. Por questões pandémicas, a maior parte da equipa ficou em Berlim durante todo o período de gravações. Para mim, foi uma experiência absolutamente inolvidável, porque nos ajudou a criar uma grande cumplicidade [entre] colegas de elenco e equipa técnica. Às vezes não estávamos a filmar, mas estávamos no set a ver o trabalho dos outros e passávamos lá o dia. Como passávamos tanto tempo juntos, a relação de toda a equipa tornou-se mesmo muito forte.

Como caracterizas a experiência de trabalhar numa série internacional produzida pela Netflix?

As gravações duraram entre sete a oito meses. Existiram, portanto, mais meios para trabalhar com esta calma [que] permite um rigor diferente. Para gravar uma cena com duração de entre 4 a 5 minutos, demorámos cerca de dois dias e meio. Eram 105 set-ups de câmara. Isto é um luxo que realmente permite ter muito material para criar o melhor trabalho possível. O Baran bo Odar fazia muitos takes porque sabia exatamente aquilo que precisava para montar o melhor resultado final.

Em Portugal, as filmagens de uma série com oito episódios duram, normalmente, entre seis a dez semanas. Nós somos realmente uns heróis por conseguir produzir coisas boas em tão pouco tempo.

Tempo também implica qualidade e segurança no trabalho e oferece a oportunidade de se poder debruçar sobre uma personagem verdadeiramente a fundo. Para mim, isso foi o ponto principal. E ter também o privilégio de trabalhar com colegas de muitas nacionalidades diferentes, com várias formas de trabalhar, [com] estéticas, linguagens e energias distintas.

Também é curioso perceber como é que tu te adaptas [a] isso. O que podes aprender, como te comunicas com um realizador que não fala a mesma língua que tu. Eu diria que isso foi excelente, porque todos temos muitas coisas para aprender uns com os outros. É uma simbiose muito saudável e que nos pode abrir novos horizontes.

Fazer parte de um projeto desta dimensão pode ser, de facto, desafiante. Quais foram as principais adversidades que sentiste durante esta experiência? 

Diria, principalmente, que foi o isolamento. Eu fui sozinho para a Alemanha e estive lá praticamente durante um ano. Estive sem vir a Portugal durante muito tempo. Os primeiros meses lá foram difíceis, confesso que foi um começo duro. Apesar de já conhecer a Alemanha, estava longe daquilo que me era familiar e sentia que existia de uma forma isolada.

Na altura, a Alemanha estava em isolamento, estava tudo fechado. Então, enquanto equipa, também não podíamos estar todos juntos em casa uns dos outros. De resto, tive muita sorte porque foram criadas todas as condições para nos sentirmos confortáveis e tranquilos a trabalhar em Berlim.

Enquanto artista, o facto de passares mais tempo isolado ajuda ou prejudica no teu processo criativo? 

Passar mais tempo sozinho dá-me espaço para mergulhar no processo de conhecer a personagem, sim. Mas, por outro lado, não ajuda muito, porque eu acho que um ator ou outros profissionais do campo das artes precisam de mundo. Precisam de viver, absorver, experimentar e descobrir. Ter interação humana, sentir o toque e a empatia. Portanto, acho que não é assim tão benéfico. Fazermos coisas da vida e descobrir-nos é importante. Acho que, de facto, isso ficou um pouco em stand-by durante a pandemia.

[caption id="attachment_457536" align="aligncenter" width="845"] Elenco de '1899'. Fonte: IMDb

“Os passageiros de um navio de imigrantes rumo ao Novo Mundo veem-se enredados num misterioso enigma quando se deparam com outra embarcação à deriva em alto-mar.” Esta é a sinopse oficial de 1899 na plataforma da Netflix. Podes levantar mais um pouco do véu sobre esta história enigmática?

A única coisa que eu posso revelar é que, quem viu Dark percebe que os realizadores gostam bastante de enigmas, puzzles e de colocar as pessoas a juntar as peças para descobrir o verdadeiro significado da história. Portanto, em 1988 existe uma componente de mistério e thriller.

O Baran bo Odar e a Jantje Friese gostam de dar pistas aos poucos e de revelar as informações nos momentos certos, quer na própria série, como ao próprio elenco. Eles diziam apenas “acreditem que isto vai ter o seu significado”, sem nos dizer do que realmente se tratava. E eles fazem isto muito bem, agarrando os espectadores da melhor forma possível.

Portanto, acho que aquilo com que o público vai poder contar é uma série que vai levantar perguntas sobre o significado que as coisas têm e o significado que as ações das pessoas têm.

Gostas de ser surpreendido ou preferes ter acesso a toda a informação da história?

Depende. Há coisas que não existe problema nenhum, enquanto ator, não saber ou compreender, principalmente aquelas que dizem respeito ao futuro da história. Por outro lado, é essencial perceber o background da tua personagem, porque é que ela tem determinados traços de personalidade, quais são os acontecimentos biográficos que a marcaram... Entender estas coisas ajuda-te a desvendar o significado da própria personagem. Mas há outras coisas que é interessante existir algum desconhecimento, porque também te aproxima do lugar onde a personagem se encontra.

O que nos podes contar sobre a tua personagem?

Apenas posso dizer que tem bigode.

Os criadores de 1899 são os mesmos de Dark, que foi um grande sucesso na Netflix. Achas que 1899 vai surpreender ainda mais os fãs?

Não sei se vai surpreender mais ou menos. 1899 tem características que lhe dão uma envergadura diferente. Se é mais surpreendente ou não, vamos ter que deixar para as pessoas responderem. Sendo uma história diferente e partindo de premissas diferentes, não consigo fazer essa análise. Às vezes acontecem coisas mesmo muito estranhas na história, cenas que não percebes o significado e achas aquilo extremamente esquisito. Mas essa também era a piada de Dark.

Tens mais algumas curiosidades para partilhar sobre toda esta experiência?

Acho que é interessante o público saber, à partida, que a série tem onze idiomas diferentes.

Durante as gravações, todos os membros do elenco fizeram os seus próprios stunts. Havia uma equipa absolutamente notável de stunt people a dar apoio no set, portanto, houve muito treino envolvido. Prepararam-nos muito bem, com muito cuidado, investimento e preparação. Houve coisas mesmo muito exigentes. Portanto, quando estiverem a ver essas cenas, estão a ver mesmo os atores e não duplos.

Outra curiosidade é que a série foi gravada num palco digital, aquilo a que chamam de virtual production, uma tecnologia que se acredita que seja a vanguarda do cinema no futuro. Diz respeito à substituição do green screen pelo the volume, um ecrã LCD com 50 metros de comprimento que permite transpor os ambientes que as personagens vivem, em vez de teres um fundo plano sem interação enquanto gravas.

Portanto, muitos cenários eram montados neste palco digital. Por exemplo, nas cenas do navio, montavam o front deck à volta do palco e todo o mar, céu e tempestades à volta estavam projetados neste ecrã. Isto ajuda muito os intérpretes, que estão verdadeiramente a interagir com as paisagens e ambientes em que as personagens estão inseridas. A nível de iluminação e fotografia também ajuda muito porque cria uma grande sensação de realidade.

Só filmámos em cinco locais exteriores, tudo o resto foi rodado em estúdio. Esta decisão foi tomada precisamente devido à pandemia. A produção tinha que dar solução para a realização de uma série desta envergadura em condições pandémicas, e esta solução [funcionou] muito bem. Para mim foi um privilégio poder trabalhar com esta tecnologia.

Para além de tudo isto, a equipa é fantástica e foi uma família que se criou realmente. A rodagem foi muito feliz. Agora é ver o resultado final. Espero que todos gostem.

1899 tem estreia marcada na Netflix para 17 de novembro. A primeira temporada da série, realizada por Baran bo OdarJantje Friese, conta com oito episódios, No elenco multilíngue estão presentes nomes como Miguel Bernardeau (Elite), Ben Ashenden (Jurassic World), Emily Beecham (Cruella), Andreas Pietschmann (Dark), Lucas Lynggaard Tønnesen (The Rain), Clara Rosager (Morbius) e José Pimentão (Al Aberto).