Crítica. 'Bones and All' é um romance perturbador, animalesco e único

Este artigo foi publicado no Espalha-Factos a 27-11-2022.

Luca Guadagnino volta a surpreender os seus admiradores cinéfilos, desta vez com a obra Bones and All. O realizador de Call Me By Your Name Suspiria, reúne agora os elementos dos géneros de drama, terror e romance numa única longa-metragem. O guião conta com a assinatura de David Kajganich e é baseado na obra homónima de Camille DeAngelis.

Bones and All conduz o público por uma viagem nos Estados Unidos na década de 1980. A descoberta pessoal das personagens mais jovens funde-se com a história de um primeiro amor e uma realidade assombrosa e perturbadora que existe há décadas. Luca Guadagnino dá voz a um grupo marginalizado pela sociedade. Solidão, amor e suspense são sentimentos representados de forma inigualável, nesta obra que marca pela diferença e singularidade.

O texto que se segue contém spoilers de 'Bones and All'.

Maren - Taylor Russel e a interpretação da autodescoberta

A sequência inicial do filme apresenta Maren (Taylor Russell), uma jovem adolescente, que vive com o seu pai (André Holland), um controlador em Virgínia. Depois de ser convidada a participar numa festa de pijama, a jovem sai de casa às escondidas, mas o convívio organizado por Sherry (Kendle Coffey) acaba da pior forma possível. Numa reviravolta chocante, Maren arranca o dedo de Sherry com os próprios dentes, instalando o pânico no grupo de adolescentes. Um verdadeiro murro no estômago para a audiência, que se deixa surpreender pelos incríveis efeitos visuais práticos.

Maren regressa a casa e acorda o seu pai que, rapidamente, percebe o que aconteceu. A família apressa-se a abandonar a cidade à medida que o público constata que esta não é uma situação estranha para o progenitor, que, na verdade, tem bons motivos para ser controlador. Afinal, a sua filha é uma canibal. Os dois voltam a começar do zero numa nova cidade americana, mas no 18.º aniversário de Maren, a jovem acorda para descobrir que foi abandonada pelo pai.

Através de uma carta e de uma cassete gravada, o homem explica que não consegue continuar a viver daquela maneira. Maren é deixada com alguns dólares e a sua certidão de nascimento, onde a jovem encontra o nome da mãe que abandonou a família após o seu nascimento. Decidida a encontrar a sua progenitora e a perceber o motivo de ser uma canibal, a jovem dá início a uma viagem de autodescoberta rumo a Minnesota.

Fotografia: IMDb

Taylor Russel brilha enquanto Maren. A principal protagonista de Bones and All obriga o espectador a admirar verdadeiramente o grande ecrã. Maren é uma jovem vulnerável, perdida e sem rumo e Russel incorpora todos os sentimentos na perfeição. Apesar de ser uma canibal Maren, conseguiu resistir à tentação durante vários anos, mas quando dá início à intensa viagem pelos estados americanos, percebe que o grupo de canibais marginalizados é muito maior e mais intimidante do que esperava. O arco narrativo da personagem ganha força com o brilho da atriz, responsável por dar vida a momentos vulneráveis e perturbadores até ao último segundo.

Sully - Mark Rylance "rouba" as cenas com uma atuação perturbadora

Quando Maren chega a Columbia, conhece o primeiro canibal, para além de si mesma. Sully (Mark Rylance) é um homem solitário que convida a jovem para sua casa, oferecendo comida e companhia. Apesar da aparência duvidosa, a protagonista aceita o convite. "Pensava que era a única", afirma, surpreendida e curiosa por conhecer alguém da sua espécie. Afinal, já não está sozinha.

Sully é um homem peculiar e estranho: a forma como se veste, fala e caminha são intrigantes e não transmitem qualquer confiança. Mas é através desta personagem que o público descobre mais sobre os canibais ou "comedores", como Sully apresenta. "Cada um tem as suas regras" e para o veterano "os comedores não comem outros comedores" e "os comedores não devem andar juntos". Por isso, os princípios de Sully fazem dele uma pessoa distante e isolada da sociedade. É simplesmente triste imaginar uma vida inteira de solidão.

O canibal explica ainda que o cheiro é um elemento fundamental para os comedores, uma vez que permite reconhecer outros da sua espécie e distinguir o cheiro de uma pessoa que está prestes a morrer. Sully usa essa ferramenta a seu favor, alimentando-se de pessoas que morrem de forma natural. Moralmente, o veterano não sente culpa por comer inocentes, uma vez que eles já estão mortos.

Maren deixa-se surpreender quando o mais velho lhe apresenta uma trança com mais de dois metros de cabelos diferentes. "Gosto de guardar recordações das minhas vítimas", explica Sully, depois de se alimentar da dona da habitação que ocupa como se fosse sua. A jovem também se alimenta da mulher sem identidade, mas acaba por não permanecer na companhia do homem que se refere a si próprio na terceira pessoa de forma intimidante.

Fotografia: IMDb

Mark Rylance dá vida à personagem mais perturbadora de Bones and All. A solidão de Sully é palpável deste o primeiro momento em que este entra em cena. Depois de uma vida inteira à margem da sociedade, encontrar uma jovem rapariga que lhe faça companhia é tudo o que o comedor veterano deseja. Mas Maren não se sente confortável na presença do mais velho, o que causa uma onda de frustração no homem, que começa a seguir, secretamente, a protagonista. Sully é uma peça-chave na criação do suspense da obra, por ser uma personagem que personifica a instabilidade e o desconforto. De forma extraordinária, Rylance desaparece por trás do guarda-roupa da personagem.

Lee - Timothée Chalamet levanta questões de ética e moral social

Em Indiana, Maren conhece Lee (Timothée Chalamet), um jovem canibal que mata pessoas solitárias, roubando de seguida os pertences das suas vítimas para uso próprio. Maren não se deixa intimidar pelos princípios questionáveis do rapaz, mas sente uma atração pelo mesmo e acaba por pedir ajuda e orientação pelo mundo canibal. Os dois partem numa roadtrip juntos.

Assim como MarenLee saiu de casa, deixando a família para trás após um incidente com o seu próprio pai. Apesar dos esforços para se manter longe da sua cidade, o jovem regressa várias vezes de forma a manter contacto com a sua irmã mais nova, Kayla (Anna Cobb). Os segredos da família disfuncional são mantidos durante a maior parte do filme, mas as pistas reveladas aos poucos permitem que o público crie as suas teorias antes das revelações finais, o que pode influenciar o impacto do fator surpresa.

A moralidade de Lee é colocada em causa quando o mesmo seduz um homem para ter relações sexuais, acabando por o matar, alimentando-se dele. Depois da dupla de comedores reunir os seus documentos e viajar até à habitação da vítima, as personagens - e o público - descobrem que, afinal, o homem não era assim tão solitário. Pelo contrário, era pai de um bebé e tinha uma mulher. O impacto deste episódio parece questionar a ética de Maren, que não se relaciona com o desapego emocional do companheiro de viagem.

Legenda: IMDb

Independentemente das diferenças morais, os dois jovens marginalizados aproximam-se, criando uma relação íntima de amizade a amor. Chalamet é responsável por dar vida a um canibal sem remorsos, mas que passa despercebido devido ao ser ar angelical e sensual - o público pode sentir-se repugnado pelos seus atos, no entanto, a presença do ator torna as suas ações "desculpáveis". A química construída com Russel, por sua vez, evolui notoriamente de cena para cena, acompanhando o crescendo da narrativa. A solidão que as duas personagens sentem fá-los aproximarem-se, inevitavelmente, um do outro. No entanto, apesar da fantástica interpretação do jovem ator, o protagonismo permanece na figura de Russel.

Brad e Jack - David Gordon Green e Michael Stuhlbarg numa intimidante participação especial

Quando a dupla de jovens comedores se diverte na natureza de Missouri, cruzam caminho com uma dupla improvável. Brad (David Gordon Green) e Jack (Michael Stuhlbarg) são dois homens canibais que viajam juntos. A dupla explica que se conheceu quando Jack se alimentava de um homem morto e Brad, então polícia, se aproximou, acabando por experimentar carne humana pela primeira vez.

Maren revela-se surpresa ao perceber que Brad é canibal por opção e não por obrigação. O momento dá espaço para o espectador refletir sobre a questão, fazendo um direto paralelismo com outras questões sociais. Por sua vez, Jack revela ao grupo que "um comedor tem de comer os ossos e tudo" - frase que dá título ao filme - para se transformar realmente. Novamente, Maren insurge-se contra o veterano, não acreditando na sua afirmação e indo contra a posição radical defendida.

Os dois homens comentam, de forma intrusiva, a dinâmica entre o jovem casal. Enquanto Brad afirma que Maren "está perdida", Jack é da opinião de que Lee é quem se encontra verdadeiramente à deriva. "Talvez o amor te liberte", afirma o comedor, remetendo para o desfecho da narrativa.

Fotografia: IMDb

É uma verdadeira surpresa para o público encontrar Green nesta participação especial, de uma forma tão nua e crua. No entanto, o grande destaque vai para Stuhlbarg. Para os fãs das obras anteriores de Guadagnino, é um verdadeiro presente voltar a encontrar Stuhlbarg e Chalamet (que foram pai e filho em Call Me By Your Name), desta vez numa narrativa tão diferente e obscura. As gargalhadas dos dois veteranos revelam-se arrepiantes e assustadoras, contribuindo para o crescimento da tensão narrativa.

Luca Guadagnino e a importância dos grupos sociais marginalizados

Bones and All ganha vida através da cinematografia de tirar o fôlego de Arseni Khachaturan. A obra fica marcada pela utilização do plano de detalhe e do primeiro plano, responsáveis por aproximar o público da narrativa, transmitindo facilmente as emoções - solidão, tristeza e insegurança - das personagens. Por outro lado, os planos gerais utilizados revelam as belas paisagens dos estados americanos visitados durante a longa-metragem, que refletem o sentimento de vazio sentido pelos membros da narrativa.

É de sublinhar ainda a importância da brilhante banda sonora composta por Trent Reznor Atticus Ross, que contribui para a construção da tensão e do suspense ao longo de toda a obra cinematográfica. A composição musical acompanha, assim, os picos de emoções sentidos pelas personagens que, inevitavelmente, influenciam a perceção do público sobre o rumo do conflito histórico.

Os efeitos práticos utilizados durante as cenas de canibalismo são responsáveis pela grande sensação de realismo, provocando um forte desconforto no público, Na verdade, esse era o grande objetivo de Luca Guadagnino. Porém, em entrevista à Slant Magazine, o realizador explica que o canibalismo não é "o ponto central" da história. "É sobre a impossibilidade de escapares a tua própria identidade. E, ao mesmo tempo, relaciona-se com o facto de poderes imaginar um cenário ideal com que sempre sonhaste. O canibalismo, por sua vez, é sobre ser alguém que tem uma condição impossível de escapar", esclarece.

Fotografia: IMDb

Bones and All é um romance arrepiante entre dois jovens marginalizados pela sociedade americana, que ainda se encontram em fase de autodescoberta. Tal como afirma Luca Guadagnino: "Há alguma coisa relacionada com os desprivilegiados e com as pessoas que vivem à margem da sociedade pela qual eu me sinto atraído". Sem dúvida, a esta é uma obra singular e inesquecível.