Crítica. 'O Que Podem as Palavras' recorda o impacto duradouro das Novas Cartas Portuguesas

Este artigo foi publicado no Espalha-Factos a 12-10-2022.

O documentário O Que Podem as Palavras, que conta a história da criação do livro Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, teve a sua estreia mundial durante a 20.ª edição do Festival Internacional de Cinema DocLisboa. O filme foi realizado por Luísa Sequeira e Luísa Marinho.

As "Três Marias" - nome pelo qual Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa ficaram conhecidas - desafiaram a autoridade do regime ditatorial português quando, em 1972, publicaram o livro Novas Cartas Portuguesas. Na obra, cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações, escritos em coletivo, abordavam "temas proibidos e censurados durante o Estado Novo, como a Guerra Colonial, o adultério, a violação ou o aborto".

O livro foi banido, e as escritoras foram "julgadas por crimes contra a moral", dando origem a uma onda de protestos por todo o mundo. O Que Podem as Palavras relembra o "antes e depois de uma das primeiras grandes lutas pela causa feminista em Portugal", liderada pelas Três Marias.

Na tarde de 9 de outubro, o Auditório da Culturgest encheu-se para receber o documentário. As cadeiras que ficaram por ocupar contavam-se pelos dedos das mãos, refletindo o entusiasmo de toda a plateia, composta por espectadores de todas as faixas etárias que aplaudiram a introdução das realizadoras Luísa Sequeira e Luísa Marinho, presentes na sessão.

O Que Podem as Palavras tem como base três entrevistas individuais realizadas pela professora e poeta Ana Luísa Amaral, a cada uma das autoras das Novas Cartas Portuguesas. Apesar dos nítidos poucos recursos da equipa técnica, as conversas expostas transmitem o conforto e descontração sentidos entre todos os envolvidos no projeto, aproximando-se rapidamente do público que se deixa rir e emocionar, conduzido pelas narrações detalhadas das Três Marias.

Fotografia: Jorge Horta

O documentário revela episódios pessoais e curiosidades sobre as autoras revolucionárias. Maria Teresa Horta recordou o momento em que, depois de lançar o seu primeiro livro, foi agredida por dois homens nas ruas de Lisboa. A autora garante que o ato de violência lhe deu "mais força para continuar a escrever", narrando com saudade as peripécias das reuniões das três colegas.

Maria Velho da Costa relembra o restaurante onde as três autoras almoçavam semanalmente, partilhando ideias e opiniões sobre diversas temáticas da sociedade da época. Foi no "13", como lhe chamavam, que surgiu a ideia de escrever um livro em conjunto. "Começou por ser uma troca de ideias", algo que "dava gozo" às colegas de profissão.

Durante nove meses, encontraram-se todas as semanas com novas cartas e ideias para o projeto, escutando e analisando os textos umas das outras. "Ler em voz alta desconstrói a solidão da escrita", afirma Maria Isabel Barreno, sublinhando a importância do acordo de confidencialidade estabelecido entre as Três Marias, de forma a não divulgarem a autoria das cartas que compõe o livro. A autora admitiu ainda que não esperava que a obra gerasse um processo judicial de tamanha magnitude.

Fotografia: Página oficial de 'O que Podem as Palavras' no Facebook

O documentário conta ainda com a participação de Gilda Grillo, peça fundamental para a divulgação internacional do livro das "Três Marias". A atriz e encenadora brasileira, que conhecia a língua portuguesa e inglesa, foi responsável por traduzir a obra e levá-la até à primeira edição do Congresso Feminista Internacional de Boston, nos Estados Unidos da América. Após a sua leitura e análise internacional, uma "onda de choque" solidário rebentou por todo o mundo, apoiando as autoras que, na altura, eram julgadas pelo Estado português.

Para além das entrevistas exclusivas, O Que Podem as Palavras ganha forma através das animações de Sama, artista responsável por ilustrar momentos narrados pelas três protagonistas, da qual não existe registo visual. Para tentar resolver esta lacuna, a equipa técnica adquiriu também o direito de diversas imagens do Arquivo da RTP.

O Movimento de Libertação das Mulheres, fundado por Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, teve a sua primeira reunião registada pela RTP após a revolução do 25 de Abril. No entanto, a reportagem foi gravada apenas em vídeo. A simples ausência do áudio reflete a forma como as mulheres ainda eram vistas pela sociedade patriarcal, silenciando e rebaixando-as constantemente. Esta simples peça demonstra a urgência das mulheres em fazerem-se ouvir na praça pública. Por isso, as Novas Cartas Portuguesas tornam-se numa obra essencial e necessária nesta época histórica de Portugal.

Fotografia: Página oficial de 'O Que Podem as Palavras' no Facebook

Após o visionamento, a equipa técnica reuniu-se para partilhar curiosidades da realização do documentário, respondendo a algumas perguntas do público mais curioso. Luísa Sequeira e Luísa Marinho recordaram com saudade Ana Luísa Amaral, que convidou as duas para realizarem o documentário. Ambas lamentaram o facto da jornalista não ter conseguido visualizar a obra final, depois da sua morte em agosto de 2022. Para as realizadoras, este filme também funciona como uma homenagem à poeta.

Ana Almeida, responsável pela montagem e edição do filme, afirmou que passou "horas a fio" a visualizar as entrevistas. "Sentia mesmo que estava a ver uma conversa entre amigas", confessou, sublinhando a grande dificuldade em selecionar o material que integraria o corte final.

A equipa revelou que o projeto teve início há 10 anos. Inicialmente, Ana Luísa Amaral preparava uma nova edição anotada da obra literária, que ganhou outros contornos. As entrevistas a Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foram realizadas entre 2013 e 2014 - no entanto, o filme só agora foi terminado por questões de produção e financiamento.

Fonte: IMDb/Divulgação

50 anos depois do lançamento da obra Novas Cartas Portuguesas, o documentário O Que Podem as Palavras vem relembrar a luta das mulheres durante uma época atípica da história portuguesa e a força do movimento feminista, que continua a ser urgente nos dias modernos. É imperativo que obras como esta possam ser vistas pelas gerações mais novas, relembrando os erros do passado de forma a evitar repeti-los no futuro. É este o poder das palavras.

O Que Podem as Palavras tem estreia comercial marcada para 2023. O Festival Internacional de Cinema DocLisboa decorre entre os dias 6 e 16 de outubro.