Imperfeitas perfeições
YOU DREW STARS
Os últimos meses foram
um grande desafio para o meu processo criativo. O isolamento e distanciamento
humano afastaram-me do meu lado mais imaginativo. As pequenas inspirações que
recebia fugiam-me pelas mãos. Simplesmente não tinha motivação para colocar as
poucas ideias que tinha em prática. A isto, juntou-se o facto de sentir a
necessidade de alterar ligeiramente a minha forma de fazer fotografia e
apresentar o meu trabalho. Talvez precisasse de conhecer e fotografar o meu
verdadeiro “eu” para conseguir captar a versão autêntica das outras pessoas.
Apesar de, inicialmente, tal ideia me parecer demasiado íntima e pessoal, com o
tempo, tornou-se numa simples tarefa que eu mesmo teria de realizar para seguir
em frente. Decidi, portanto, abraçar e aceitar, finalmente, algumas das minhas
imperfeições. Numa sociedade que se deixa admirar por tudo o que é, ou parece,
perfeito, tal ideia parecia brutalmente descabida. Principalmente, quando
falamos de rostos, a capa do livro de cada um de nós. Numa realidade onde o
brilho e o glamour da maquilhagem elevam a nossa autoestima, às vezes parece
que nos esquecemos daquilo que tentamos esconder. Desde os primeiros anos de
adolescência fui o rapaz do grupo com “vulcões” na cara. Apesar de tentar não
dar importância ao assunto, eu achava que era simplesmente nojento. Não
percebia por que raio era tão amado pelas borbulhas enquanto os meus amigos se
passeavam com peles perfeitas de bebé. Enfim. Só mais tarde é que comecei a
perceber que, por mais dicas, truques e conselhos que tentasse seguir, pouco ou
nada resultava. Só tinha de aceitar a realidade e deixar o meu corpo fazer o
que tinha para fazer. Hoje, quando olho ao espelho todos os dias, lembro-me
desses tempos de inseguranças. As marcas deixadas para trás podem não ser esteticamente
bonitas, muito menos perfeitas, mas são reais. E eu só tenho de aprender a
viver com elas.
AROUND MY SCARS
Tinha 10 anos quando fui
operado pela primeira vez. Não sabia muito bem porquê ou o que estava a
acontecer. Ainda guardo algumas memórias distorcidas e desfocadas dos dias em
que os barulhos das máquinas a apitar se faziam ouvir durante todo o dia. No
quarto ao lado, no entanto, o som tão rotineiro desligou-se de repente, dando
lugar a um choro de desespero de dois adultos que chamavam por alguém que já
não voltava. Senti o meu pai agarrar a minha mão, tentando abstrair-me daquele
som de fundo. Acho que aquela foi a primeira vez que senti o medo que ele tentava
esconder. Não me lembro ao certo de quantos dias passei nos cuidados
intensivos, mas, quando regressei a casa, tive de, literalmente, aprender a
caminhar novamente. Depois de tantos dias deitado numa cama em repouso
absoluto, o meu corpo precisava de se recompor. Mas quando me olhei ao espelho,
vi, pela primeira vez, as grandes marcas rosadas e nada discretas. Eram
estranhas. A minha mãe brincava e dizia que pareciam tatuagens. Mas eu não
achava muita piada. A única esperança que tinha era que elas pudessem
desaparecer e, com elas, as memórias que tentava apagar da cabeça. Mas isso não
aconteceu. No verão seguinte, não me sentia à vontade na piscina nem na praia.
E tinha apenas 11 anos. Alguma coisa deveria estar completamente errada para um
menino de 11 anos não se sentir à vontade com o seu corpo. Não era suposto
aquela ser a minha preocupação. Mas, infelizmente, era. Só com o passar dos
anos é que, eventualmente, comecei a aceitar as cicatrizes que, para sempre,
irão fazer parte de mim e da minha história. Acredito que esta é a primeira vez
que a fotografo e que gosto, realmente, de a ver na sua forma mais genuína
possível.
BUT NOW I’M BLEEDIN’
Um dia disse à minha mãe
que a estava a ver a dobrar. Como se tivesse à minha frente duas televisões a
transmitir a mesma imagem ao mesmo tempo. Era estranho e desconcertante. A
partir daí, a minha relação com a visão nunca mais foi a mesma. Com mais ou
menos estrabismo, com maior ou menor campo de visão, tive de aprender a lidar
com mais uma imperfeição que o meu corpo apresentava. “Podes-me dizer onde
está? Não consigo encontrar” ou “Desculpa, não percebi que eras tu ali ao
fundo”. Não, não são desculpas esfarrapadas ou piadas de mau humor, são apenas
a minha realidade diária. Apesar de, por vezes, esta dificuldade me provocar
alguns constrangimentos, contento-me com a simples oportunidade de conseguir
ver o mundo à minha volta. E ele é demasiado bonito para me preocupar com
coisas “feias”. Da mesma forma, nem tudo é preto ou branco. Bom ou mau.
Perfeito ou imperfeito. E foi por isso que decidi apresentar este autorretrato
super íntimo e genuíno em tons de cinza, da forma mais real possível. Poderia
simplesmente publicar estas fotografias sem qualquer descrição. Mas aí, o
significado não teria sido o mesmo. Felizmente, é com pessoas como o
@hopelexxoul, que estão dispostas a ouvir as minhas ideias aleatórias e a
ajudar-me neste processo criativo, que quero colaborar e trabalhar daqui em
diante, de maneira a criar conteúdo perfeitamente imperfeito, mas realmente
verdadeiro.
Song
"cardigan" - Taylor Swift
"cardigan" - Taylor Swift
Ilustration
Henrique Pais
Director
Ângelo Oliveira